As pessoas de bem não são capazes de matar galinhas

terça-feira, 30 de outubro de 2018


Recentemente, saiu aqui no Brasil mais uma belíssima antologia da Companhia das Letras, dessa vez, um volume inteiramente dedicado à poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen. Coral e outros poemas, organizada por Eucanaã Ferraz, é uma coletânea marcada por contrastes, fazendo jus às múltiplas vozes presentes na obra da poeta portuguesa. Se encerra em suas páginas textos de profundo lirismo, tendo o mar como uma das temáticas centrais, o livro também contém poemas de luta e resistência, o que vem a calhar em momentos sombrios de caos político e caça às bruxas – ou aos artistas.  

Por acaso, foi um dos poemas dessa leva mais indignada e combativa que me chamou a atenção para a obra de Andresen. Em alguma sexta-feira aleatória, estava eu assistindo a um sarau organizado pela Livraria da Travessa (com taças de espumante sendo servidas para os participantes, porque melhor do que ouvir poesia é ouvir poesia bebendo de graça) quando, em dado momento, uma das convidadas leu um poema chamado “As pessoas sensíveis” que já começava com uma porrada no leitor, afirmando que “as pessoas sensíveis não são capazes de matar galinhas, porém são capazes de comer galinhas”. Longe de ser uma ode ao veganismo, contudo, o poema de Andresen versa sobre a hipocrisia e as injustiças sociais, estrofe após estrofe, golpe após golpe. 

Ao longo dos versos, Sophia nos conta que o dinheiro cheira a pobre e à roupa do corpo que, depois da chuva e do suor, não é lavada (porque não tinham outras). O livro onde o poema foi publicado pela primeira vez, Livro Sexto, data de 1962. A reflexão, entretanto, continua atualíssima. O seu, o meu, o nosso dinheiro é banhado de suor e sangue dos socialmente mais desfavorecidos e historicamente explorados. É a nossa versão contemporânea e gourmetizada da escravidão, em que direitos trabalhistas são tirados da população do dia para a noite, a precarização do trabalho não é a exceção, mas a regra, e a aposentadoria parece um sonho distante. 

Em uma clara crítica à falácia da meritocracia, Sophia também brada que, ao contrário do ditado popular, não se ganha o pão com o suor do rosto – mas sim, com o suor dos outros é que se ganha o pão. Isso me fez lembrar do momento exato em que eu tive pela primeira vez o que costumam chamar de “consciência de classe”: foi quando calculei o lucro que eu trazia – na ordem dos milhões – para a loja online em cujo departamento de marketing tive o desprazer de trabalhar por anos, e comparei com os números magrinhos que apareciam em meu contracheque no 5º dia útil. Mas divago.

Já no fim do poema-manifesto, a autora evoca atores sociais que voltaram perigosamente à moda de uns anos para cá: os vendilhões do templo, sempre aptos a fazer dinheiro com a fé alheia, cheios de devoção e de proveito, mas completamente desprovidos de vergonha na cara. Poderia perfeitamente ser um retrato do Brasil atual, dominado por falsos profetas, supostos enviados de deus – em minúsculas mesmo –, que trabalham arduamente para implantar um Estado evangélico totalitário. E o pior, sem a menor chance de remissão de nossos pecados

“As pessoas sensíveis” não foi escrito em nosso país, nem trata do cenário eleitoral de 2018 – O Apocalipse. Porém, ao criticar a hipocrisia da classe dominante, a exploração dos trabalhadores, as desigualdades sociais e a mercantilização da fé, toca em feridas que ainda estão expostas, e que infeccionam nossa democracia pouco a pouco. Vale lembrar que a própria poeta também teve sua participação na vida política de Portugal: foi ferrenha opositora do regime salazarista, membro da Comissão Nacional de Apoio aos Presos Políticos e, após a Revolução dos Cravos, tornou-se deputada pelo Partido Socialista. Fosse no Brasil de hoje, decerto seria acusada de mamar nas tetas da Lei Rouanet. 

O título do poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, é óbvio, é uma deliciosa ironia, já que os versos esfregam na cara dos leitores que as assim chamadas “pessoas sensíveis” de sensíveis têm muito pouco. Não é culpa delas, elas dizem. Eximem-se de qualquer responsabilidade pelas barbáries urbanas, e fingem que não são parte do problema. O inferno sempre são os outros. Algo semelhante ao que ocorre com os famigerados “cidadãos de bem” de nossos tempos. 

Perdoai-lhes, Senhor, porque eles sabem o que fazem. 

Fabiola Paschoal
Bibliófila, feminista, redatora, geek. Entusiasta das letras e das artes, adora quebrar estereótipos e dar opinião sobre qualquer assunto.





Expresso

sexta-feira, 5 de outubro de 2018


Andar a esmo pelas ruas, sem absolutamente nenhum motivo, é um pequenino exercício antropológico com que me presenteio quando a rotina corrida tem a delicadeza de abrir uma brecha. Ter o privilégio de trabalhar em casa me dá a oportunidade de tirar umas horinhas – em pleno dia útil, que sacrilégio! – para me dedicar ao ócio observativo e descobrir os mais peculiares personagens urbanos, cheios de suas deliciosas idiossincrasias. Aos curiosos, diria que o faço para tirar ideias: roubar um trejeito aqui ou ali para usar num personagem, me inspirar em alguma situação esdrúxula para criar uma cena. É isso, mas também não é. Na verdade, gosto de fantasiar sobre pessoas e coisas desconhecidas, o que, de qualquer maneira, ajuda a esquecer do marasmo da realidade

Naquele dia, passeava pelo centro da cidade. Já tinha entrado no sebo, garimpado quinquilharias para a casa na selva do Saara, presenciado uma discussão especialmente acalorada na saída do metrô e dado um oi para um museu pequenininho e subestimado, só para não perder o hábito. Sentei em um café escondido, mais para descansar do que pela necessidade de fazer um lanche. Lá para as tantas, comecei a contemplar o que se passava ao redor, enquanto bebia, com cuidado, uma xícara de café mais quente do que meus lábios gostariam. A bebida fervia na boca, apenas mais um desconforto entre os muitos que tinham lugar dentro de mim, naquele momento. Enquanto isso, folheava meu livro sem, contudo, prestar-lhe a atenção merecida.

Era uma quinta à tarde, e eu provavelmente deveria estar trabalhando – infelizmente meus textos não iriam se escrever sozinhos, e o deadline se aproximava perigosamente. Talvez por medo de enfrentar essa responsabilidade de uma vez, talvez pela coragem irresponsável de deixar tudo para a última hora e, ainda assim, dar conta dos prazos, meu radar estava voltado não para as pautas que me aguardavam em casa, mas para o casal ao lado, que havia acabado de pedir dois expressos e, em seguida, iniciar uma longa e aparentemente infrutífera discussão. 

Os dois já haviam ultrapassado a adolescência com folga – o homem provavelmente passara dos sessenta, e a mulher dificilmente teria menos de quarenta e cinco. A despeito da suposta maturidade, insistiam numa troca de farpas sem sentido, com direito a muxoxos e acusações infantis. O homem dizia, num tom de voz típico de quem não tem o costume de ser contrariado, que ela queria estar sempre certa, que ele nunca reclamava de nada do que ela fazia, mas que não aguentava mais suas birras e implicâncias com tudo. Por sua vez, a mulher se queixava do fato de nunca poderem sair juntos, já que o cônjuge parecia ter sempre algo melhor para fazer, planos esses que nunca a envolviam. Reclamava dos filhos dele, provavelmente frutos de um casamento anterior. Ambos destilavam seus venenos particulares sem pudores, em alto e bom som, como se sua intimidade já houvesse caído em domínio público. 

E eu, que há muito já não conseguia mais focar nos poemas que se desdobravam nas páginas à minha frente, pus-me a refletir que, se um relacionamento padrão socialmente aceitável tivesse que ser nesses moldes, decididamente estava muito bem só, obrigada. Meus livros, e minhas séries, e meus filmes, e meu vinho, ao menos, não eram fonte de aborrecimento. Minha epifania foi quebrada abruptamente pelo gesto de pedir a conta na mesa ao lado. Os expressos haviam acabado, mas nada indicava que a discussão seguiria o exemplo. Pelo visto, a noite ainda seria longa. 

Saíram, e seus lugares foram rapidamente tomados por um jovem casal que em nada diferia de qualquer outro, a não ser pelo fato curioso de que cada um portava seu próprio leitor digital. Conversavam animadamente sobre os livros que liam – o rapaz já passara dos 93% de sua leitura, a moça ainda passeava pelos 45%. A conversa fluía leve, sem cobranças, sem sarcasmos. Tentei de todas as formas descobrir o que estavam lendo, mas foi em vão. Sorri para mim mesma com uma certa pena, desistindo, pois, de saciar minha curiosidade. Voltei meus olhos para o livro que jazia em meu colo e me dizia que um útero é do tamanho de um punho. Retomei, enfim, a leitura do mesmo ponto onde havia parado.

Deve ter sido lá pelos últimos goles do meu expresso que voltei a lembrar do casal que ocupara a mesa apenas meia hora antes, pensando no contraste entre eles e os jovens que haviam tomado seus lugares. Sem saber, aqueles dois casais, tão distintos, me haviam feito refletir mais naquele curtíssimo período do que durante a semana inteira. Pode ser que a interessância dos relacionamentos amorosos – e por que não, da vida – esteja mesmo no inesperado, pensei, enquanto pousava a xícara no pires em silêncio e me preparava para perseguir novos personagens pelas ruas do centro do Rio. 

Fabiola Paschoal
Bibliófila, feminista, redatora, geek. Entusiasta das letras e das artes, adora quebrar estereótipos e dar opinião sobre qualquer assunto.





Movimento em ciano

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Fabiola Paschoal
Bibliófila, feminista, redatora, geek. Entusiasta das letras e das artes, adora quebrar estereótipos e dar opinião sobre qualquer assunto.





Permanência

segunda-feira, 1 de outubro de 2018


Tudo parecia estranho ao entrar no apartamento pela primeira vez, ainda tão nu de significados. O sol da manhã entrou pelas venezianas semiabertas, ronronou na varanda, o chão imitando tijolinhos. A luz incidiu preguiçosa sobre os ganchos pendurados estrategicamente nas pareces, como se pedissem, praticamente implorassem para que uma rede fosse pendurada ali, onde de tarde eu pudesse me jogar e ler um livro. E samambaias. Sim, aquela varanda também pedia samambaias, muitas, frenéticas, constrangedoramente exuberantes. Nota para mim mesma: providenciar muitas plantas para transformar esse lugar em uma selva contemporânea, um oásis escondido nas entranhas de Copacabana. 

Pensei meio aleatoriamente em quão esquisita me parecia a situação de passar por outra mudança de casa, porque a cada uma delas, parecia que um pedaço de mim se perdia durante a viagem, aos solavancos do caminhão, em meio aos móveis desmontados, os enfeites e brinquedos e badulaques embrulhados em quilos e mais quilos de plástico bolha, e os livros amontoados em caixas de papelão roubadas do Hortifruti. Nunca chegavam todos ao destino. Que me restasse a esperança de que os volumes que eventualmente se extraviassem pelo caminho, talvez caídos do veículo após uma freada mais brusca, encontrassem um transeunte amigo que lhes soubesse fazer companhia. 

Pensar nos livros me fez abrir um sorriso de súbito. A sala era mais comprida do que larga, e se isso parecia ser um problema na hora de decorar, por outro lado, permitia a realização de um sonho antigo: o sonho da parede-inteira-tomada-por-estantes própria. No meio de todo o caos que a vida tinha se tornado no último mês, era um alento saber que meus livros iam finalmente ter um lugar decente para dormir, sem ter que ficar amontoados e empilhados, juntando poeira, por cada microcanto do flat minúsculo que servira de caverna para mim nos últimos cinco anos.

Por alguma razão, todo esse devaneio me lembrou do poema que eu havia lido não fazia nem duas semanas, de uma poeta que não conhecia mas que, nos primeiros versos, já parecia ter se tornado meu alter-ego poético, ou alguma coisa parecida com isso, caso eu fosse minimamente capaz de escrever poesia que não se parecesse com versinhos de pré-adolescente que tomou o primeiro pé na bunda. 


“que lugar é este olho ao redor e estranho a cadeira
de lona estranho as almofadas sobre o sofá tudo é
velho tudo é desconhecido e ao mesmo tempo
velho não sei quem viveu aqui
não sei que lugar é este tudo muda
desde ontem tudo muda eu
permaneço.“


Tinha anotado o poema no bloco de notas para não esquecer de procurar informações sobre a autora depois, mas acabei decorando-o na íntegra. De alguma forma, parecia para mim que os versos livres e desordenados de Annita Costa Malufe serviam como metáfora não só para a situação de mudanças, resiliência e caos pela qual eu estava passando mas, por que não dizer, para a minha vida. Tudo ao redor me era estranho, caótico; meus sentidos eram construídos por meio da desordem. Eu tentava me encontrar em minha própria imprevisibilidade. No fim das contas, acho que eu era contemporânea demais para conseguir ser clássica.

Andei até a varanda e abri a janela, menos para respirar o ar puro que vinha do mar, e mais para deixar aqueles pensamentos seguirem viagem. Talvez, apenas talvez, o poema de Annita não falasse somente sobre mudanças e estranhamentos, mas também sobre solidão. Era por isso que doía. Era por isso que pulsava. Era por isso que havia se instalado na memória de forma tão avassaladora. No prédio em frente, a janela cerrada ostentava um cartaz de “Fora Temer”. Ri sozinha disso. Quem sabe, depois de me instalar, eu não batesse lá e convidasse essa pessoa para tomar um café comigo. 

Após mais uma volta pelo palácio de quarto-sala-banheiro-cozinha, lâmpadas testadas, torneiras abertas, chuveiro a gás recebido com alegria, guardei as chaves na bolsa e bati a porta com força – não havia maçaneta do lado de fora e, portanto, trancar era desnecessário. 

Segui caminhando pelos ladrilhos coloridos, intimamente satisfeita com a visita. Não sabia dizer o porquê, mas tinha a impressão de que aquele apartamentinho seria o lugar perfeito para mim.



Fabiola Paschoal
Bibliófila, feminista, redatora, geek. Entusiasta das letras e das artes, adora quebrar estereótipos e dar opinião sobre qualquer assunto.
 
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