Expresso

sexta-feira, 5 de outubro de 2018


Andar a esmo pelas ruas, sem absolutamente nenhum motivo, é um pequenino exercício antropológico com que me presenteio quando a rotina corrida tem a delicadeza de abrir uma brecha. Ter o privilégio de trabalhar em casa me dá a oportunidade de tirar umas horinhas – em pleno dia útil, que sacrilégio! – para me dedicar ao ócio observativo e descobrir os mais peculiares personagens urbanos, cheios de suas deliciosas idiossincrasias. Aos curiosos, diria que o faço para tirar ideias: roubar um trejeito aqui ou ali para usar num personagem, me inspirar em alguma situação esdrúxula para criar uma cena. É isso, mas também não é. Na verdade, gosto de fantasiar sobre pessoas e coisas desconhecidas, o que, de qualquer maneira, ajuda a esquecer do marasmo da realidade

Naquele dia, passeava pelo centro da cidade. Já tinha entrado no sebo, garimpado quinquilharias para a casa na selva do Saara, presenciado uma discussão especialmente acalorada na saída do metrô e dado um oi para um museu pequenininho e subestimado, só para não perder o hábito. Sentei em um café escondido, mais para descansar do que pela necessidade de fazer um lanche. Lá para as tantas, comecei a contemplar o que se passava ao redor, enquanto bebia, com cuidado, uma xícara de café mais quente do que meus lábios gostariam. A bebida fervia na boca, apenas mais um desconforto entre os muitos que tinham lugar dentro de mim, naquele momento. Enquanto isso, folheava meu livro sem, contudo, prestar-lhe a atenção merecida.

Era uma quinta à tarde, e eu provavelmente deveria estar trabalhando – infelizmente meus textos não iriam se escrever sozinhos, e o deadline se aproximava perigosamente. Talvez por medo de enfrentar essa responsabilidade de uma vez, talvez pela coragem irresponsável de deixar tudo para a última hora e, ainda assim, dar conta dos prazos, meu radar estava voltado não para as pautas que me aguardavam em casa, mas para o casal ao lado, que havia acabado de pedir dois expressos e, em seguida, iniciar uma longa e aparentemente infrutífera discussão. 

Os dois já haviam ultrapassado a adolescência com folga – o homem provavelmente passara dos sessenta, e a mulher dificilmente teria menos de quarenta e cinco. A despeito da suposta maturidade, insistiam numa troca de farpas sem sentido, com direito a muxoxos e acusações infantis. O homem dizia, num tom de voz típico de quem não tem o costume de ser contrariado, que ela queria estar sempre certa, que ele nunca reclamava de nada do que ela fazia, mas que não aguentava mais suas birras e implicâncias com tudo. Por sua vez, a mulher se queixava do fato de nunca poderem sair juntos, já que o cônjuge parecia ter sempre algo melhor para fazer, planos esses que nunca a envolviam. Reclamava dos filhos dele, provavelmente frutos de um casamento anterior. Ambos destilavam seus venenos particulares sem pudores, em alto e bom som, como se sua intimidade já houvesse caído em domínio público. 

E eu, que há muito já não conseguia mais focar nos poemas que se desdobravam nas páginas à minha frente, pus-me a refletir que, se um relacionamento padrão socialmente aceitável tivesse que ser nesses moldes, decididamente estava muito bem só, obrigada. Meus livros, e minhas séries, e meus filmes, e meu vinho, ao menos, não eram fonte de aborrecimento. Minha epifania foi quebrada abruptamente pelo gesto de pedir a conta na mesa ao lado. Os expressos haviam acabado, mas nada indicava que a discussão seguiria o exemplo. Pelo visto, a noite ainda seria longa. 

Saíram, e seus lugares foram rapidamente tomados por um jovem casal que em nada diferia de qualquer outro, a não ser pelo fato curioso de que cada um portava seu próprio leitor digital. Conversavam animadamente sobre os livros que liam – o rapaz já passara dos 93% de sua leitura, a moça ainda passeava pelos 45%. A conversa fluía leve, sem cobranças, sem sarcasmos. Tentei de todas as formas descobrir o que estavam lendo, mas foi em vão. Sorri para mim mesma com uma certa pena, desistindo, pois, de saciar minha curiosidade. Voltei meus olhos para o livro que jazia em meu colo e me dizia que um útero é do tamanho de um punho. Retomei, enfim, a leitura do mesmo ponto onde havia parado.

Deve ter sido lá pelos últimos goles do meu expresso que voltei a lembrar do casal que ocupara a mesa apenas meia hora antes, pensando no contraste entre eles e os jovens que haviam tomado seus lugares. Sem saber, aqueles dois casais, tão distintos, me haviam feito refletir mais naquele curtíssimo período do que durante a semana inteira. Pode ser que a interessância dos relacionamentos amorosos – e por que não, da vida – esteja mesmo no inesperado, pensei, enquanto pousava a xícara no pires em silêncio e me preparava para perseguir novos personagens pelas ruas do centro do Rio. 

Fabiola Paschoal
Bibliófila, feminista, redatora, geek. Entusiasta das letras e das artes, adora quebrar estereótipos e dar opinião sobre qualquer assunto.

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